segunda-feira, 5 de abril de 2010

Diário de campo

Todavia não me apresentei. Encontro-me agora no interior de um covil de bailarinos. Eles não sabem o que estou fazendo aqui. Nossos corpos diferem. Eles se esticam ao passo que redijo. Dois homens, dentre eles o mentor da companhia, e seis mulheres. Seus corpos são maleáveis, o meu é rijo como os grafemas que registro em busca de algum entendimento. O salão em que eles ensaiam é respeitável. Piso de tábuas largas e contínuas. Ambiente afável. Hoje substituí a sala de aula pela prática etnográfica efetiva. O que viria a ser uma antropologia do encontro? Eles se espreguiçam. No alto da grande sala há uma placa amarela: “homens trabalhando”. Eles se alongam quase o tempo todo em silêncio, objeto que sempre tratei de documentar. Uma bailarina, ao passo que se retorce, me encara e cisma, “– Diabos, que tanto escrevinha esse sujeito!”. Os olhares vez ou outra conferem minha presença. Eles tomam posição frente ao monitor para mirar o espetáculo cuja remontagem se aproxima. Eles devem decidir o que desprezar e o que conservar. “­– Está muito anos oitenta isso aí” [Diga-se de passagem, que belo objeto de exame não são os oitenta]. “What is behind the curtain?”. Seus corpos agora se transformam, sentados, como quaisquer outros. De pé, atrás de todos eles, espreito a constituição de uma cena acometida pela composição de uma outra. “– Eu nem me recordava de nada disso”. De que são compostas afinal as “imagens poéticas”? Pista sonora, Creep, Radiohead. Para adentrar o salão é preciso estar descalço. Tudo indica que estamos num templo em que se transcende pelos pés. Fui acometido por um clichê. As apresentações de dança jamais serão iguais. Hora de práxis. Eu retorno à aresta e eles se tornam um círculo. Eles exercitam exaustivamente um mesmo movimento cuja coerência transita pelo mínimo. Oito pessoas matutando. “– O deslocamento, assim, fica duro, fica fora”. Aos poucos se avizinham de um ideal. Um corpo engendra outro. O traçado é bonito, macio. “– O braço corre aqui, a perna se ergue para lá”. “– Para reter uma coreografia não podemos isolar os gestos”. “– Eu não afasto os braços dela a esmo. Eu penso tudo ligado”. As metáforas denotam fluidez. Faz alguns minutos que uma bailarina está em transe. Apartada de todos, como eu.

Quarta-feira

Hoje estive presente a mais um encontro de improvisação. Foi nessa direção que descobri, por acaso, sujeitos elementares da investigação que há pouco registrou seus primeiros passos. Aos poucos o olhar se acostuma ao estranhamento da matéria. Inversamente ao que havia traçado, optei mais uma vez pelo espaço reservado aos espectadores e não pela extensão circunscrita à cena. Farei assinalar insights. O distinto senhor que tenho diante de mim exercita o português frente a dois objetos, o jornal de hoje e um Larousse. Pela esplêndida nariganga, pelo prodigioso bigodão, e pelo restante da composição, eu arriscaria se tratar de um arábico. Ontem o princípio do meu sono se confundiu com uma longa sucessão de devaneios atabalhoados. Ocorreu-me pensar a criação, esse assunto essencialmente coberto de sigilo pela nossa cultura. A meu ver a concepção de que o artista cria a partir de coisa nenhuma, ex nihilo, é vigorosamente prestigiada por nossa hereditariedade bíblica, que concede ao mundo, aos homens e às coisas uma existência antes da qual resta senão um vão silencioso. Essa noite eu experimentei um sonho deliciosamente surreal. Há dois dias presenciei uma cena que parece ter excitado um desejo recôndito. A imagem da reprodução exaustiva de um breve trecho coreográfico se inscreveu de tal forma em minha memória, que minha mente foi capaz de ocupar caprichosamente o interior da compleição de um bailarino. Subitamente era eu quem encenava aquela série de movimentos irrepreensivelmente retidos na lembrança. Hoje fiz uso da máquina de lavar e meus trajes se multiplicaram. O número de disposições possíveis dos membros do conjunto nos seus subconjuntos se ampliou. Hoje dei sossego ao par de tênis que me escoltava desde que cheguei. Eles agora hibernam debaixo do escuro da cama. O novo par parece não ter ainda se habituado à nova cidade. Em breve estará mais confortável. Troquei novamente os botões. Violetas por copos de leite. Hoje o intervalo temporal entre o diário e o blog se tornou insustentável e num arroubo de espírito publiquei leves sínteses dos últimos dias. Atravesso uma breve crise no que tange o propósito desta página. Talvez eu devesse fundar um preceito íntimo e assim parar de matutar em demasia sobre o que componho ou deixo de exprimir. A unidade, evidentemente indispensável, eu relego à natureza da espécie que, segundo Giorgio Agamben,

[...] não subdivide o gênero, expõe-no. Assim, desejando e sendo desejado, o ser faz-se espécie, torna-se visível. E ser especial não significa o indivíduo, identificado por esta ou por aquela qualidade que lhe pertence de forma exclusiva. Significa, pelo contrário, ser um qualquer, ou seja, um ser que é, indiferentemente e genericamente, cada uma das suas qualidades, que adere a elas, sem deixar que nenhuma o identifique.
Por Renato Jacques

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